Infâmia

Uma Proposta :: Resort Costeiro de Santa Mônica :: 10 de Junho, AQ 0

“É uma oportunidade, Tierslay. De sair dessa maldita rocha. Ser alguma coisa. Só isso. Para de olhar pra mim como se eu quisesse alguma coisa.”

“Você sempre quer alguma coisa, Taernen. Você é assim.”

“Claro. Mas neste caso, o que eu quero é cuidar da minha maninha.”

Tierslay queria acreditar em seu irmão. Ela ansiava por um pingo de esperança. A vida nas favelas de barracas do Mojave na periferia do enclave de Los Angeles era dura – afligida pelo sol e fedorenta. A brutalidade da sua juventude nas favelas de São Paulo, cheias de gangues e tufões, fazia o Mojave parecer um passeio de fim de semana num spa orbital luxuoso. Vinte e cinco anos de existência e Tierslay não conseguiu nada além de continuar pobre e constantemente desesperada. Taernen, por outro lado, conquistou na malandragem seu caminho pra fora da sarjeta, chegou até a Califórnia e esculpiu uma vida próspera. De algum jeito, a dez mil quilômetros de distância, ele tirou Tierslay de São Paulo pouco antes da maior parte da cidade ficar debaixo d'água. Taernen não explicou como ele conseguiu garantir a passagem dela para Los Angeles, amontoada num contêiner com uma centena de refugiados climáticos desgrenhados, e Tierslay nunca forçou uma resposta dele. Ela só estava grata de estar viva. Praticamente todo mundo que ela conhecia em São Paulo não teve a mesma sorte.

Já em Los Angeles, Taernen deu a ela o suficiente para sobreviver por algumas semanas. Depois disso, ela lutou por sustento fora dos muros do enclave, entre milhões de outros refugiados que eram mantidos na linha por drones armados que enchiam os céus. Não fosse por sua criatividade programando e pelos hacks ilegais que exigiam sua habilidade, ela teria morrido de fome.

Taernen vivia além das concertinas, entre os privilegiados, entre aqueles que trocaram de corpo e diziam ter derrotado a morte. Sua lábia e suas conexões questionáveis lhe garantiram um estilo de vida que poucos com sua criação aprovariam, e menos ainda teriam acesso — as ampliações, a pilha cortical, os backups frequentes. A infância deles foi mergulhada em fanatismo católico e uma adesão rígida ao bioconservadorismo, doutrinados pela pregação incessante da sua mãe, “Seu corpo é um presente precioso de Deus. Poluí-lo com bugigangas criadas pelo homem é um pecado imperdoável.” Com Tierslay a doutrina pegou, firmemente enraizada na sua visão de mundo. Taernen a ignorou de cara no início da adolescência, o que o jogou para fora do casebre da família. Um ano depois, a mãe deles foi atingida por uma bala perdida no caminho de volta do mercado, outra estatística da violência de gangues. Tierslay tinha nove anos. Ela segurava a mão da mãe quando aconteceu.

Taernen continuou com a ideia. “A Terra é uma perda de tempo, Tierslay. Todas as corps com influência, visão ou ambição já fugiram. Pra Marte, pra Lua, porra, até pra Vênus. Estes são os lugares onde gente como nós pode viver de verdade. E quando eu for, eu não vou voltar. Você vai ficar onde? Mendigando nas ruas com aquele patife do Monte porque você está atolada na tradição?”

“Monte não é um patife. Ele sofreu bastante, igual a gente.”

“Ele é o pior tipo de criminoso, Tier. Insignificante. Nenhuma ambição além de sobreviver drogado. Você tem talento demais. Em Marte, com todo o capital fluindo, aquelas empresas precisam de uma programação de primeira. Eu poderia mexer uns pauzinhos, encontrar um caminho pra você. Uma vida honesta.”

“Que? Honesta igual a sua?” Tierslay sorriu e ergueu um copo num brinde a seu irmão, o criminoso. Ele não brindou.

“Você já não teve o bastante da sarjeta quando a gente era criança?”

“Eu tenho meu jeito de ver o universo e você tem o seu. Eu escolho permanecer pura aos olhos de Deus…”

“O velho de barba branca do céu está cego, mana. Seus olhos foram arrancados há muito tempo.” Taernen exibiu seu sorrisinho pretensioso de irmão mais velho enquanto Tierslay balançava a cabeça.

De algum lugar lá em cima, vindo da noite esfumaçada longe do brilho das luzes do resort, um neo-corvo pousou na mesa à beira da piscina ao lado de Taernen. Tierslay reagiu com nojo e se afastou da mesa.

“Calma, Tier. Ele está comigo.”

“Odeio pássaros.”

“Pois é, eles provavelmente não devem gostar muito de você também.”

O olhar inteligente do neo-corvo se virou para Tierslay, marcado por um desgosto inumano. Entre seus olhos havia um pequeno espigão, e gravado em seu peito brilhando através das penas havia uma nanotat mostrando nove círculos escarlates entrelaçados. A cada respiração, um círculo diferente se iluminava. Taernen e o neo-corvo se inclinaram e trocaram sussurros. Tierslay sentiu os olhares deles sobre ela, mesmo com ela olhando fixo para o piso de mármore sob seus pés.

“Preciso ir, Tierslay. Negócios a tratar.” Taernen ficou de pé. “Pense na minha oferta. Backupear só quer dizer liberdade. Ir onde bem entender, ser o que bem entender. Liberdade da morte. É bobagem se apegar a contos de fadas, Tier. E lembre-se, só estou cuidando de você. Como sempre.”

Tierslay acenou com a cabeça, mas não respondeu.

O neo-corvo voou novamente para o céu noturno e Taernen caminhou em direção à entrada brilhante do cassino. Um homem esguio com trajes requintados e uma nanotat de nove círculos estampada na lateral da cabeça raspada passou pela entrada do cassino para cumprimentar Taernen com um abraço forte e caloroso. Logo depois, um prod de segurança do resort chegou na mesa de Tierslay educadamente pedindo para ela deixar o local agora que seu responsável pela área da piscina havia saído.


Um Apelo Desesperado :: Barracas do Mojave :: 11 de Junho, AQ 0

Tierslay conheceu Monte em seu último acampamento, num beco largo atrás de uma fábrica de carne suína abandonada. Décadas depois da fábrica ter parado, o fedor ainda permanecia.

“Estes cérebros de bot Go-nin são complicados, Monte. Especialmente o EEL 3, que eu nunca tinha visto até agora, e muito menos hackeado um. Eu vou precisar de pelo menos algumas horas.”

“A gente não tem algumas horas, Tier. Esse cara está doido por um 3 hackeado. Preço não é problema. Essa tralha pode deixar a gente de boa por alguns meses. Eu preciso que você consiga.”

O desespero de Monte estava estampado no seu rosto magricela e na forma com sua camiseta surrada vestia seu corpo esquelético. Eles eram amigos desde os primeiros dias dela na Cali e parceiros em pequenos crimes por anos. Tierslay odiava vê-lo assim, na fissura e acabado, uma casca do vigarista que escapava de qualquer encrenca com um sorriso. A vida nas ruas finalmente o derrotou. As ruas sempre ganham, pensou Tierslay.

“Como você conseguiu o 3, Monte? Isso é alta qualidade.”

“A gente não tem tempo pra discutir estes detalhes, Tier. Eu preciso de você aí, detonando, fazendo sua mágica.”

“Alguém se machucou, Monte?”

“Que? Não. Quer dizer, não sei direito. Eu não tenho certeza. Eu consegui de um cara que pegou de um cara. Eu não fiz perguntas. A oportunidade surgiu e eu peguei.”

Tierslay se virou pra ir embora. Ela tinha uma regra nos seus esquemas: ninguém nunca se machuca. Monte correu pra frente dela, bloqueando o caminho, tremendo com as mãos entrelaçadas, a pose do mendigo.

“Eu sei que a gente tem um acordo, Tier. Ninguém se machuca. Mas você precisa acreditar em mim. Eu não tenho certeza e nunca vou saber. Eu preciso que você quebre essa pra mim. Por favor.” Os olhos de Monte estavam úmidos de angústia e seus lábios rachados pelo sol implacável. Tierslay conhecia o olhar. Ela fez o mesmo várias vezes — desespero do fim da linha balançando acima do esquecimento. Ela tinha que ajudar seu amigo, apesar da chance de violar a única regra rígida da sua vida criminosa.

“Você quebrou uma pra mim várias vezes no passado, Monte. Eu quebro essa pra você.”

Monte envolveu Tierslay em seus braços com um assovio de alegria. “Dividimos meio a meio e um belo jantar chique por minha conta. Eu vou conseguir passes pra gente pro enclave de Heights. Vamos comer uma refeição que foi cultivada e cozida de verdade, servida num prato elegante, com molho derramado numa espiral! Nada daquela gororoba fabro-líquida!”

Monte arrumou para Tierslay um barraco improvisado na esquina feito com lona desfiada azul e paletes de construção quebrados. O lugar criava um pouco de sombra na tarde, dando um descanso do sol forte para o cérebro poder se concentrar. Tierslay tinha vinte minutos para hackear o EEL 3 antes do comprador chegar.

Ela voou na programação. Como ela imaginava, foi complicado. As travas proprietárias de cibercérebros Go-nin eram notoriamente difíceis de quebrar. O mercado para cérebros de bot hackeados sem os códigos padrões de fábrica estava explodindo, ainda que, nos dois lados dos muros, então Tierslay gastou muito do seu tempo fazendo engenharia reversa das restrições de copyright e apps de controle de acesso de qualquer peça de bot que ela colocasse as mãos. Distorcer a saída ou rodar um esquema de depuração sofisticado estavam fora de questão. Não havia tempo. Sua única esperança era encontrar e violar uma das poucas vulnerabilidades ocultas que ela tinha descoberto nos modelos de Go-nin antigos. Depois de quinze minutos, ela achou — era uma controladora que ela podia enganar para fornecer as chaves de criptografia necessárias. O suor pingou em seus olhos enquanto ela rodava a violação e o software de segurança era quebrado. Acesso root garantido. O cérebro de bot agora obedecia suas ordens. Talento sempre dá um jeito, Go-nin. E com tempo de sobra.

Mas depois, tiros.

Três deles. Pá. Pá. Pá. Sincopados com perfeição e precisão. Profissional.

O barulho tirou a concentração dela. Ela saiu da barraca e rastejou através de uma área coberta. Espiando o beco pela esquina, Tierslay viu três sintemorfos bem vestidos com pistolas na cintura. O corpo sem vida de Monte estendido no cascalho, o sangue empoçando ao redor da cabeça. Tierslay fez o sinal da cruz, pediu a Deus por proteção e correu.

Ela não parou até chegar em seu bloco de barracas a mais de três quilômetros. Bolhas estavam se formando em seus pés e sua respiração vinha com tremores de uma dor aguda. Ela curvou-se e apoiou-se numa palmeira morta. Quando ela se endireitou, ela esperava ver sua barraca no lugar dela dos últimos dois anos, mas ela tinha desaparecido. Só restaram concreto e pilhas de lixo.

Tierslay pensou em apenas correr. Teria sido a coisa mais inteligente a fazer. Em vez disso, ela correu para o lugar onde sua barraca ficava. Ela chutou um monte de embalagens de fast-food amassadas para ver se não tinha sobrado nada. Atrás delas ela viu um terço de madeira que sua mãe havia lhe dado na primeira Comunhão. Ela pegou o cordão e chorou. Ela apertou o terço nas mãos e levou aos lábios. “Não posso morrer aqui. Por favor, não me deixe morrer aqui.” Ela beijou as contas. Em um sussurro tão desesperado que Tierslay imaginou suas palavras penetrando na madeira macia, ela pediu a Virgem Maria guiá-la para a salvação.


Só por Garantia :: Na Quebrada :: 13 de Junho, AQ 0

Tierslay chegou no endereço que Taernen lhe tinha dado pouco antes do pôr-do-sol, uma caixa de concreto sem janelas numa das zonas neutras guetizadas entre enclaves. Armazéns invadidos e vilas de barracas se espalhavam por quilômetros em todas as direções sobre o asfalto ardente. Tierslay estava familiarizada com o miasma incapacitante do ciclo da pobreza — esse fantasma estava sempre rondando. Apesar dela relutar em admitir, durante anos isso foi desgastando sua fé. Como tanta miséria e morte poderiam ser um plano divino? O rosto de uma criança olhou para ela através de uma abertura da barraca, como seu próprio passado a vendo através dela, outro sinal para atender ao chamado do seu irmão para escapar.

Um sinal pintado acima da única porta do edifício mostrava um mago maníaco com chapéu pontiagudo eletrizando as palavras Pinball Museum. Tierslay bateu. Após uma longa espera, o suficiente para se questionar por que concordou com a oferta de Taernen, uma oferta que mudaria totalmente a forma como via o universo e o seu lugar nele. Então a porta se abriu revelando uma figura esbelta num macacão roxo escuro colado ao corpo. A cabeça inteira do sintemorfo era um globo ocular detalhado e injetado com uma íris amarela no centro.

“Saudações. Você deve ser a 18 horas.” A voz da figura era grave e tinha uma reverberação.

Tierslay suprimiu o desejo de correr e respondeu: “Sim. Você deve ser Ukku. Meu irmão Taernen falou muito bem de você. Disse que você fez um ótimo trabalho.” Ukku ficou quieto e em silêncio. Tierslay não tinha ideia se o que estava dentro da cabeça bizarra estava tomando um momento para avaliá-la ou estava cochilando em pé na porta. Sua pele arrepiou-se com a pausa constrangedora.

A cabeça de olho gigante finalmente se mexeu, inclinando ligeiramente. “Eu sou o melhor, 18 horas. Você deveria ser infinitamente grata por seu irmão se preocupar tanto contigo. Meus serviços, embora possam ser considerados baratos por aqueles que têm meios de pagar por instalações mais respeitáveis, são, ainda assim, de primeira qualidade.” Ukku se afastou com um floreio, chamando Tierslay para entrar. “Vamos ao trabalho, 18 horas. Nosso tempo juntos é curto.”

Ukku conduziu Tierslay através de um labirinto de máquinas coloridas do século 20 com luzes piscando, estalos e cliques analógicos, e promessas de bolas grátis. Apesar do nervosismo pelo procedimento iminente, estas engenhocas simples de outra época a fizeram sorrir. Ela já havia visto fliperamas em filmes antigos, mas nunca pessoalmente, e a presença de tantas juntas num só lugar, literalmente centenas, era como desenterrar uma tumba desconhecida cheia de tesouros.

No canto mais distante e mais escuro do edifício, o labirinto de fliperamas abriu-se num pequeno espaço fechado com plásticos. Ela viu uma mesa de metal cheia de instrumentos cirúrgicos. Ukku apresentou outro globo ocular, este com íris violeta e com o corpo do tamanho de uma criança, como seu assistente, ToXxot. ToXxot trouxe uma cama cirúrgica coberta de plástico, jogou um travesseiro em cima dela, em seguida, pegou Tierslay pela mão e indicou para que ela se deitasse de barriga para baixo com o rosto no travesseiro. Uma máquina estranha foi colocada ao lado dela, um mecanismo arredondado de escaneamento se desdobrou como pétalas em torno da sua cabeça. Quando tudo estava no lugar, o olho de ToXxot se iluminou e jorrou uma intensa luz branca em todas as direções. Ukku se abaixou sobre Tierslay com um dispositivo de injeção ameaçador na mão.

“Isso está acontecendo tão rápido”, disse Tierslay. “Não sei o que você está fazendo. Nem sei quem vou me tornar.”

ToXxot acariciou as costas de Tierslay e fez sons que pareciam os pios de um passarinho faminto enquanto Ukku falava. “Calma, calma, 18 horas. Não se assuste. Você está com Ukku. Quando o das 19 horas chegar, você será eterna.”

Estes momentos permaneceriam com Tierslay para sempre. Os globos oculares. O terror. O medo penetrante de uma decisão de mudar a vida como metal frio pressionando sua nuca. A sensação de centopeias metálicas se desenrolando e rastejando por sua cabeça e se fixando nela.


Lapso :: O Retorno Zentrópico :: 13 de Março, DQ 9

A vista no campo de visão de Tierslay mudou. O chão já não era mais concreto, mas ripas de madeira, dispostas num padrão geométrico estranhamente calmante. Ela se contraiu com a súbita sensação de queda. Ela xingou um pouco, e então se acalmou ao perceber que tiras seguravam ela no lugar. Ausência de peso.

Ela já não estava na oficina do Ukku, isso estava claro. Ela prestou atenção nos sons do novo lugar. Um ritmo suave, uma melodia harmônica agradável. A intenção era óbvia, criar uma atmosfera calma. De algum lugar lá no fundo da mente anuviada de Tierslay, uma voz desconhecida se apresentou com uma cadência nítida e formal.

[Olá, Tierslay. Bem-vinda a sua nova capa. Você precisa de assistência imediata?]

O pânico tomou conta. O procedimento. Alguma coisa deu muito errado. Eu fiquei louca. Oh Deus. Ou pior. Eu sou um cadáver. Atormentado por tantos pecados. Quando foi minha última confissão?

A voz respondeu. [Infelizmente, Tierslay, esta informação não está disponível. Sua agenda está totalmente vazia antes de hoje. Você gostaria que eu criasse um evento anterior chamado “Última Confissão”?] Seja qual fosse a fonte da voz, ela estava hackeando seus pensamentos.

Seu corpo parecia estranho, meio rígido. As sensações de temperatura, do tecido contra a pele, pareciam erradas. Ela não conseguia sentir a pele ou os músculos se esticando. Ela controlava seus membros, mas as amarras seguravam-na firmemente.

Tierslay tentou prestar atenção em sua respiração, na movimentação do seu peito, na sensação de ar suave e frio através das suas narinas, mas não havia nada lá. Os processos pareciam não mais existir. Grite por ajuda, ela pensou, mas ela não conseguia sentir seus lábios ou suas cordas vocais. Toda a biologia da sua cabeça e seu rosto não estavam lá. Não dormentes, mas inexistentes.

A voz desconhecida retornou, agradável. [Um grito é desnecessário, Tierslay. Alertei o técnico que o seu upload está completo e a plena consciência foi restaurada. Ele estará aqui em instantes para ajudá-la. Então podemos começar a nos familiarizar com este modelo de chapeado específico.]

Vai se foder, diabo. Com ou sem boca, vou berrar até não poder mais. A palavra “Ajuda!” soou de algum lugar na parte de baixo do rosto de Tierslay, criada por uma voz que era feminina e rouca, mas artificial e definitivamente não era a dela. Seu pânico aumentou mil vezes e ela enunciou a palavra uma segunda vez, alongada e com um aumento de volume.

Um homem flutuou no campo de visão limitado de Tierslay. A pele dele era branca e lisa, seus olhos círculos perfeitos de cor lavanda. Ele sorriu gentilmente. “Bem-vinda ao Returno Zentrópico. Meu nome é Badal”, disse o homem. Tierslay tomou um momento para avaliar Badal antes de responder, para determinar se esta última aberração era amigo ou inimigo, demônio ou anjo.

A voz interrompeu. [Não há necessidade de ter medo, Tierslay. Você está segura aqui. A instalação de Badal tem @-rep acima de 95% da flotilha. De acordo com as resenhas, ela é a melhor escolha para aqueles buscando uma experiência de reencape tranquila. Você deveria se apresentar.]

Apesar das suas desconfianças, pela primeira vez, Tierslay decidiu ouvir a voz. “Meu nome é Tierslay.”

“Eu sei. Vamos tirar estas amarras. Deixar você solta.” As amarras se afrouxaram e retraíram. Tierslay se viu flutuando livremente, sem saber que lado era para cima. Seus braços balançaram conforme ela começou a girar.

Badal ajudou Tierslay a se orientar. “Peço desculpa pelas amarras. São estritamente para garantir a segurança do cliente. Um pouco oposto à estética zen que buscamos, eu sei. Espero sinceramente que elas não tenham estragado a experiência.”

Tierslay demorou um pouco para se adaptar à sensação de microgravidade. “Estou com medo.”

“Naturalmente. É muito para absorver, considerando o que sei da história do seu ego. Não se preocupe muito com a ausência de peso, você se adaptará rapidamente.”

O quarto era acolhedor, bambu ornamental suavemente iluminado por um brilho que emanava por trás das paredes de pergaminho. Tierslay olhou para os seus braços. Onde antes havia uma pele morena escura, agora havia metal, um acabamento azul-ardósia fosco, amassado e arranhado. Tierslay esperava verter lágrimas do choque daquela visão. Ela esperava um frio na barriga, o aperto no peito que só pode ser liberado com suspiros chorosos, mas os sistemas biológicos necessários não estavam mais presentes. Uma realização passou por cima de todos os outros pensamentos como um tsunami de pesadelo — a única coisa que restou da carne e dos ossos dados por Deus era sua mente, e até isso era questionável.

“Onde estou?”

A pergunta era para Badal, mas a voz interior respondeu a Tierslay. [Estamos na flotilha da ralé conhecida como Vá a Marte.] Um mapa 3D em realidade aumentada apareceu na lateral do seu campo de visão, mostrando uma série de objetos de diferentes tamanhos agrupados, a maioria alongados, e alguns ligados entre si. Naves.

O Badal percebeu a confusão dela. Vá a Marte é um coletivo nômade anarquista de naves e habitats interligados, atualmente à deriva logo depois do Cinturão Principal, no lado de Júpiter.”

“Júpiter.”

“Sim.”

Tierslay levou um momento para processar. O que a palavra “Júpiter” realmente significava para alguém que nunca tinha estado em um avião, que nunca tinha conhecido nada além dos alastramentos urbanas de concreto de um planeta chamado Terra. Espaço. Estou na vastidão da escuridão. Fora do único corpo que eu conheci. Tierslay enfiou todos esses conceitos em outro compartimento, para serem processados outra hora. Agarre-se a alguma coisa agora, ela disse a si mesma. É como decifrar um código complexo, uma linha de cada vez antes de atacar o programa inteiro. A voz. Lide com a voz.

“Há algo na minha cabeça, uma voz…”

“Sua musa.”

“A minha musa?”

“Um assistente de IA limitada. Desculpe. Não sabia que você não conhecia musas. Um ego sem uma é extremamente raro. É uma instalação padrão durante um reencape se uma musa já não estiver embutida com o ego.”

Tierslay tinha ouvido falar de musas. Elas eram comuns entre os privilegiados. Ela nunca tinha tido uma. Para sua família, IAs eram uma abominação aos olhos de Deus, e os implantes em que elas residiam, uma afronta à natureza.

“Ela está me irritando. Posso desligá-la?”

“Você pode silenciá-la, claro. Sua musa é totalmente personalizável. Mas eu recomendaria que você se abrisse à experiência. Dê-lhe um nome. Module a voz para um tom e cadência que você preferir. Com o tempo, vai se acostumar. Eu prometo. Você pode até considerá-la uma amiga, eventualmente. Não consigo imaginar a minha vida sem Rikita. Rikita lhe deseja prosperidade e alegria neste novo caminho, a propósito.”

“Agradeça a Rikita.”

“Eu tenho outros clientes para atender, mas eu preparei um conjunto de vídeos introdutórios curtos para aclimatá-la. Veja-os quando preferir. Também recomendo o simulador zero-g.” Vários itens apareceram em sua tela entóptica. “Por favor, não tenha pressa. Quando você se sentir bem, a saída é à esquerda e no final do corredor.” Com um aceno de despedida, Badal projetou-se para uma das paredes de pergaminho e deslizou-a.

“Espere!”

“Sim?”

“Nem sei como eu vim parar aqui.”

“Acredito que seu benfeitor tenha as respostas que procura.”

“Meu benfeitor?”

“O homem que negociou o seu upload e seu morfo. Uma rep péssima, mas bastante persuasivo. Ainda não sei porque aceitei com o acordo”, Badal encolheu os ombros. “Ele está à sua espera fora das instalações.” Uma trilha virtual surgiu, marcando o caminho.

Quando Tierslay se puxou através do portal ladeado de bambu que levava para fora da serenidade fechada do Retorno Zentrópico, a transição a sobrecarregou. Em todas as direções, multidões de pessoas encapadas em corpos exóticos flutuando e se misturando. Risos, gritos e música a engoliram, temperadas com os aromas de comida e coisas estranhas. Estruturas, arranjos de equipamento, e coisas que ela não sabia identificar agarradas a todas as superfícies. Ela não sabia dizer se era uma festa, uma exposição de arte ou outra coisa. Não havia para cima, nem para baixo, só a agitação da vida em todas as direções. Convites e propostas coloridos surgiram em sua visão antes da sua musa filtrá-los.

[Bem-vindo ao Setor Echo Blue], disse a voz. [Isso já foi parte de um habitat de luxo na órbita da Terra com gravidade por rotação, mas agora a flotilha o reboca em zero-g. Várias facções da ralé a utilizam como mercado ao ar livre/ponto social.]

Tierslay agarrou-se ao trilho brilhante como uma corda salva-vidas, seguindo-o através do caos até seu benfeitor, um homem magricela com mechas dispersas de longos cabelos pretos. O nome dela pairou acima da cabeça do homem em RA, piscando fortemente. Tierslay foi se enfiando através do fluxo de pessoas e se aproximou do homem, desconfiada, mas também sem saber o que mais fazer. A parte inferior do seu rosto estava ondulada e brilhante com escarificação desenhadas, e seus olhos eram discos pretos vazios. Em sua cabeça, ela o imaginou com uma capa, como um Drácula Espacial Retrô.

O seu sorriso já tinha as presas. “Ei, maninha. Há quanto tempo.”


Reunião :: Setor Echo Blue :: 13 de Março, DQ 9

“Tenho perguntas…”

“E talvez eu tenha respostas”, Taernen encolheu os ombros. “Talvez não.”

“Como chego a casa?”

“Você está em casa. Então poderia tentar aproveitar, certo?” Taernen abriu o tubo da sua esfera de Americano, com um toque de creme, e sugou-a. Ele fez uma careta para o autocozedor todo grafitado montado na parede. “Merda anarquista barata!” Ele voltou sua atenção para a irmã. “Isto é água suja comparado com o café em Marte. Coisa real, cultivado numa fazenda hidropônica. Não esta porcaria de impressora líquida.”

“Esta não é a minha casa, Taernen. Este não é o meu corpo. Nem sequer estou convencida de que eu ainda sou eu. Num segundo, estou cagando de medo com a sua aberração do globo ocular. No seguinte, estou aqui, a meio bilhão de quilômetros da Terra…”

“Pode parar por aí, Tier. Caramba. Acho que esqueci de como você é nova quanto ao estado atual do sistema.” O Taernen estalou os dedos e depois o pescoço. Tierslay esperou, parada e em silêncio. “Odeio lhe dizer isto, mana, mas não tem como voltar para casa. A Terra não é mais habitável. É uma bola flutuante de poeira de inverno nuclear. Ela é desolação já faz quase uma década.”

O frio a envolveu. “Que?”

“Isso. Surpresa. Bem-vinda à vida depois da Queda. Nós mexemos com as TITANs, IAs assustadoras, e elas nos foderam de verdade. Absorva isso por um momento e deixa quieto. Não tem razão para se prender nisso. Prefiro manter o passado fodido morto e enterrado. Sou mais feliz e produtivo assim.”

Tierslay olhou para suas mãos, um lugar familiar para fixar seus olhos quando ficava perturbada numa conversa com seu irmão mais velho. A visão dos dedos de metal a perturbava ainda mais. “O que aconteceu ao meu verdadeiro eu, então?”

Taernen sorriu, incapaz de resistir a uma chance para cavar fundo e distorcer velhas brincadeiras de irmãos. “Provavelmente, sua carne foi assada, queimada até ossos. E os ossos? Provavelmente numa pilha com bilhões de outros. Mas quem se importa? A coisa que faz você ser você, a coisa que realmente importa…” Taernen bateu seu dedo ossudo na cabeça dela, “…isso escapou. Graças a mim.”

“Oh, Deus…”

“Anime-se, mana. A vida vai ficar muuuito melhor.” Ele inclinou-se mais perto e mudou sua voz para o clássico sussurro sério que Tierslay se lembrava bem. O timbre da voz era diferente, rachado e fino em vez de grave e ressonante, mas as inflexões eram inconfundíveis. “Tenho um trato que não posso perder. Assim que fecharmos, vamos tirar você dessa lata de metal e colocar num biotrampo personalizado.”

“Não quero mais entrar nos seus negócios, Taernen. Nem sequer sei quem sou, como a vida ainda funciona, e aqui está você falando de negócios…”

“Tier, Tier, olhe para mim.” Tierslay virou sua visão para os desconhecidos olhos negros e vazios de Taernen, sem saber se o olhar dele estava encontrando com o formato que seus olhos tomaram nesta forma metálica estranha. Pelo que ela sabia, a cara dela não era mais que uma chapa lisa de aço com dois pontos e uma linha. “Você está pirando. Eu entendo. Isto é muito para absorver.”

“Só quero ser eu outra vez.”

“Acha que estou feliz nesta merda emprestada em que estou? Estou chocado que nenhum dos braços tenha caído. Veja. Podemos criar algo parecido com o você original, se é isso que você quer, assim que eu tiver alguns recursos e estivermos de volta em Marte, onde eu tenho alguma influência. Aqui? Com estes babacas da ralé? Eu valho tanto quanto uma bosta ressecada de cachorro chutada na velha sarjeta de São Paulo. Mas a boa notícia é que tenho um plano. Podemos contornar esta treta da rep e manter este trato na mesa. E é aqui que você entra.” Taernen entrelaçou suas mãos ossudas, apertando os dedos finos. “Preciso que se recomponha e se adapte. Rápido. Não posso ficar por aqui muito mais tempo. Tenho uma transmissão agendada de volta a Marte em uma hora.”

“Vai me deixar aqui?”

“É. Faz parte do trato. Você, aqui, conhecendo o lugar, criando algumas relações, contribuindo para a merda coletiva deles, o que for preciso para criar confiança. Precisamos disto, Tier. Volto daqui um mês, talvez dois. Isso deve lhe dar um tempo para usar seu charme, conseguir a rep que precisamos para pedir alguns favores. Depois o trato é feito, e nós caímos fora desse show de aberrações e voltamos para o sistema interno, onde as pessoas apreciam o poder da porra de um cred honesto.” A testa de Taernen se enrugou de raiva e seu olho esquerdo se mexia com tiques, uma expressão familiar num rosto desconhecido. Estranhamente, ela achou reconfortante.

“Então, suponho que não vai me dar detalhes sobre este trato.”

Taernen sorriu. Sua irmã indo na dele, como sempre. “Não. É melhor assim. Quanto mais você souber, mais chance de dar errado. Eu te enrolei alguma vez?”

Por um momento, Tierslay queria dizer que sim, que ela teria preferido a morte a estar contra sua vontade numa casca de metal. Seu eu verdadeiro estava morto. E ela era… o que? Uma cópia sem alma? Ela se sentiu sem Deus, abandonada, mas não menos viva. Em vez disso, ela acenou com a cabeça. “Não. Você não, Taer. Confio em você. Farei o que for preciso.”

Os grandes olhos negros nas órbitas profundas não deram nada em troca. Alguns segundos constrangedores de silêncio passaram. Taernen se agitou. “Muito bem. Tenho de ir. Arranjei um quarto pra você no setor Tall Red, do outro lado deste habitat. Um cômodo, mas você não precisa de muito. Sintemorfos tem essa vantagem, pelo menos. Minimalismo. Tem muita gente como você lá, sintes e outros parecidos, então você não vai se sentir tão estranha, vai se dar bem lá. Todas as suas necessidades básicas estão garantidas até eu voltar. Uma última coisa…”

“Sim?”

“Não confie em ninguém. Invente a história que quiser, mas fique longe da verdade. Podem estar vigiando. É melhor que ninguém saiba que somos família. Eu te acho quando eu voltar.” Taernen soltou o grampo da parede e empurrou-se, agarrando a tira de um cabo de reboque próximo. Ele foi puxado para longe até sumir na multidão do distrito. Foi-se.


Sem Rumo :: Enxame Vá a Marte :: 13-20 de Março, DQ 9

Na sua primeira semana, Tierslay perambulou. Perambular era uma habilidade que ela havia dominado ao longo dos anos. Raramente tendo um lugar para chamar lar, sua sobrevivência dependia disso. Ela estava relutante em achar seu quarto no Tall Red, tinha medo de que uma realidade que ela não estava pronta para encarar chegaria de vez quando ela o encontrasse. Sem rumo sentia-se segura. Sentia-se em casa.

Durante os primeiros três dias, ela conseguiu se mover através das naves interligadas da flotilha duas vezes. Já não precisa mais dormir. Também não precisava comer. Ela só mantinha seus membros se mexendo e seus olhos catalogando. Ela falou muito pouco, ficando nas sombras quando possível, absorvendo os detalhes. Ela manteve sua musa em silêncio, permitindo que a IA realizasse uma função — por pontos no mapa da flotilha sempre que ela sentia olhares desconfiados para ela. Quando concluiu sua segunda volta, havia pontos por toda parte, então ela desabilitou a função e admitiu que estava sendo paranoica demais.

No quarto dia de perambulação, enquanto passava por The Midnight Mastermind, um pequeno cargueiro popular com elevados, Tierslay viu um conhecido, mas detonado, modelo de robô Go-nin. Um neo-polvo mexia em seu cibercérebro enquanto teclava num quiosque de nanofab e murmurava obscenidades.

Ela decidiu quebrar o silêncio. “Estes Go-nins podem ser difíceis.”

O polvo olhou para cima contorcendo os braços com frustração. “Já viu um destes antes?”

“Um. Programação complicada, mas consegui quebrar. Mas isso foi há muito tempo.” Semana passada, ela pensou.

“Eu conheço um colecionador em Ceres, sempre ansioso para comprar modelos vintage pré-Queda, mas não consigo fazer essa coisa funcionar. Você acha que pode dar uma olhadinha? Ah, me chamo Pivo”, disse o neo-polvo, enrolando um dos seus braços na mão de Tierslay. Ela se surpreendeu por não ter se afastado.

Tierslay trabalhou no bot cerca de uma hora para deixar ele rodando como novo. Foi um alívio mergulhar no código, um território familiar em meio a um mar de incerteza. Impressionado, Pivo lhe deu um toque, elevando a reputação dela. O polvo assobiou pelo sifão enquanto via sua rep baixa, seu histórico vazio.

Ela respondeu ao olhar questionador, “Estou aqui faz pouco tempo.” Que eufemismo ridículo.

“Sabe”, Pivo disse, “Eu tenho uma amiga na LO — Lucky Observer – ela está procurando um programador criativo e você é claramente habilidosa.” O Pivo enviou a localização à musa de Tierslay. “Fala com Elis. Ela está esperando você.”

Tierslay sondou a área ao redor do quiosque, procurando olhares curiosos. Alguns elevados voavam, balançavam ou passavam rapidamente, todos cuidando da própria vida. Deixa de ser paranoica, Tier. Siga o fluxo. “Me parece ótimo.”

Conforme Pivo levava o bot embora, Tierslay percebeu que esta foi a primeira vez que ela falou com um elevado. Sua igreja, sua mãe, os consideravam um crime contra Deus, um dos maiores pecados. Ela balançou a cabeça, envergonhada pela sua própria intolerância. Bastou apenas uma conversa.


Narcos :: Danger Noodle :: 20 de Março, DQ 9

A caminho da LO, Tierslay passou por uma nave chamada como Danger Noodle. Sua principal característica era um toroide rotativo, dando gravidade simulada para uma grande balada interminável. A energia era intoxicante, uma mostra vibrante de expressão individual. Sinte, bio, elevado, infomorfo projetado, e toda forma, tamanho e modificação imaginável se mexendo livres, perdidas no ritmo. Ela nunca havia visto nada assim, e pela primeira vez desde que acordou aqui, Tierslay sentiu alegria. Ela decidiu se distrair lá por algumas horas, mexer seu novo corpo e se acostumar com suas possibilidades.

Um sinte gigante com quatro braços enormes se aproximou se Tierslay, a cabeça era uma reprodução perfeita de um oni sorridente. “Sou Berk.” Berk estendeu sua mão esquerda inferior em saudação. Tierslay continuou se movendo enquanto apertava a mão dele. “Tierslay.”

“Primeira vez na Noodle?”

“É tão óbvio assim?”

A risada rouca de Berk estava em sintonia perfeita com a música extravagante. “Eu cuido da segurança. Conheço todos que passam por aqui. Bem-vinda à festa.” Uma explosão de glitter em RA surgiu quando a musa de Tierslay alertou-a para o recebimento de uma transmissão de Berk — um executável com o nome _fi_zz_ee_66_.

“Fizzee66?”

“O melhor e mais recente narcótico. Programado por um convidado. Está vendo aquele grupo ali, dançando no Drip?” Berk estendeu um dos seus braços superiores para indicar um grupo de sintemorfos perto de onde a pista de dança se curvava para cima e fora da vista, atrás de um chuvisco azul neon. Seus corpos se contorciam em êxtase, indo direto de pontes para giros de cabeça, girando de bananeiras lentamente caindo em espacates. “Eles estão rodando fizzee66 faz dois dias seguidos. Você deveria tentar. Prometo que ele não vai desapontar.”

“Não tenho dinheiro.”

A cara do oni sorriu. “Nem eu. Esta é uma economia de oferta, Tierslay. O dinheiro é para oligarcas e serviçais.” Após uma reverência, Berk virou-se e saiu para outra conversa.

A musa de Tierslay avisou-a que o executável estava limpo e o que uma pesquisa rápida na mesh revelou sobre o arquivo. Diziam que os efeitos do narcoalgoritmo eram muito agradáveis. Estou gostando desse negócio de musa, ela pensou e sua musa respondeu com uma suave tremulação de alegria nas bordas da sua visão. Foda-se, vamos rodar isso.

Um formigamento percorreu o corpo sintético de Tierslay, começando pela cabeça e passando agradavelmente por todo os sistemas, e então dos pés voltando para cima. A sensação imitava arrepios surgindo na pele e então se esvaindo num calor prazeroso, ampliado mil vezes. Cada viagem extática por seu corpo começava com as pancadas graves intercaladas do som da batida. Conexão completa com o ritmo. Tierslay deslizou para o Drip, até o grupo que Berk apontou antes, e se juntou a diversão deles pelos próximos dois dias, nunca parando de se mexer, Fizzee66 fazendo sua mágica o tempo todo.


Oportunidade :: Bateaux :: 22 de Março, DQ 9

“Pivo disse que você tem altas habilidades com código.”

“Uau. Estou lisonjeada.”

“Não fique. O lula entende de hardware, mas software não é a praia dele. Ainda assim, ele tem um bom olho pra talento.” Elis estava pendurada num tubo iluminado agarrado por seus pés grossos, seu cabelo se remexia em zero-g como cobras roxas e pretas recém-alimentadas. Tierslay olhou para ela, inquieta.

“Não fique tão nervosa, Tierslay. Pivo e eu somos próximos. A palavra dele tem peso por aqui.” Elis balançou pela sala, reorientando-se de frente para Tierslay, numa aterragem perfeita marcada por um sorriso pretensioso. A oficina de sintemorfos personalizados de Elis, Bateaux, era uma bagunça elaborada, a área de trabalho de uma verdadeira artista sem tempo para organização. “Vamos direto ao assunto. Eu construo e modifico sintes, mas também recebo um monte de gente vindo para o enxame atrás de suplementos específicos para cibercérebros. É aí que preciso de ajuda. Qual a sua experiência programando narcos?”

A desconfiança surgiu. Ela pensou no aviso do irmão e em todos os olhares que sentiu sobre ela. Está tudo se alinhando bem demais. Eu deveria ter cuidado, certo? A vida nunca foi tão fácil, tão coordenada. Mas a oportunidade era inebriante e ela nunca havia batido em sua porta antes. Ela decidiu largar a paranoia e aceitar.

“Engraçado você falar isso…” Tierslay fez a sua musa oferecer Zyzzee66 — a sua versão hackeada de Fizzee66. “Isto é algo que eu fiz em algumas horas. É um hack de Fizzee66, se já ouviu falar…”

Elis interrompeu Tierslay e sorriu. “Ah, estou bem familiarizada com o Fizzee66 — eu que projetei. O Pivo que deu a letra? Aquele espertalhão.”

“Não fazia ideia. Eu consegui no Danger Noodle. De um tal Berk.”

“Então, não curtiu? Esse seu Zyzzee é melhor?”

“Não me interprete mal. Eu adorei Fizzee. É sublime. Só vi algumas oportunidades de ampliá-lo nas coisas que gostei.”

“Tá bom, sabe-tudo. Chega de conversa. Me deixa provar”, Elis piscou para Tierslay. “Esta é uma biocapa, mas o cérebro é hardware. Me ajuda a verificar o código nos cibercérebros que eu instalo.” As pupilas de Elis dilataram-se em discos azul-real, lágrimas encheram seus olhos e depois escorreram por suas bochechas. Alguns segundos dentro do abraço de Zyzzee66 foi o bastante para Elis perceber o talento na sua frente. Ela matou o processo e tomou um momento para se recompor. “Impressionante. Não perfeito, claro — você precisa checar os limiares de pseudodopamina, uma viagem inicial assim pode criar vertigem — mas não tão ruim para alguém uma década atrasada nos desenvolvimentos da programação.”

Ela olhou bem para Tierslay e então aumentou a rep dela. “Bem-vinda à família Bateaux, minha gloriosa narcohacker.”


Reflexo :: Setor Tall Red :: 22 de Março, DQ 9

No nono dia, Tierslay chegou em seu quarto no Tall Red.

Ela flutuou até a vidraça uns metros além da sua porta e olhou para a área central do Tall Red, para os quatro pilares enormes revestidos de veludo vermelho ondulante, a característica que dava o nome ao distrito. Corpos se agitavam, abaixo, acima, lentos ou apressados, alguns sintéticos, alguns de carne, formas que ela nunca havia visto ou poderia ter imaginado. Este lugar está vivo, pensou ela. Sem sol escaldante e implacável, sem asfalto ardente, sem patifarias para sobreviver. O desespero parecia magicamente não existir. De alguma forma, ela tinha escapado do inferno. Os anarquistas que ela conheceu na Terra eram revolucionários apáticos e sem deus. Até vir para cá, ela nunca tinha entendido o objetivo da luta deles. Agora estava começando a fazer sentido.

Doutrinação bateu e Tierslay começou a fazer o sinal da cruz por gratidão, mas ela parou em “em nome do” quando seus dedos metálicos tocaram em sua testa metálica. Ela olhou para o seu reflexo, apenas um fantasma no vidro. Os detalhes do seu rosto estranho se turvavam sobre a atividade ao fundo do outro lado. Ela podia sentir a musa silenciosa absorvendo seu desejo, e a característica da sua visão mudou. Tudo além do vidro se escureceu e o reflexo de Tierslay se polarizou em foco. Pela primeira vez, ela viu seu rosto. Olhos vazios, feitos sem expressão. Sem curvas do nariz, apenas metal liso escovado. Sua boca era uma malha oval fina, imóvel; sem sorrisos, beicinhos, lambidas ou beijinhos. Era apenas um emissor de ondas sonoras. Num profundo segundo, uma vida de crença se dissipou no nada, sua alma esmagou-se na não existência. Agora ela era Tierslay, o ser artificial, formado pelas ambições dos transumanos, e não pelas mãos de qualquer deus. A revelação fez ela rir. Vida. Que confusão fodida e esplendorosa.

Uma libélula do tamanho de um gato gordo passou por Tierslay e desceu pela passagem estreita apenas para voltar de ré alguns momentos depois. Ela pairava atrás dela, asas metálicas brilhantes e iridescentes zumbindo.

“Olá, nova vizinha!”, disse a libélula. “Sou Bixbee. Duas portas por ali.” As muitas pernas de Bixbee apontavam na direção da passagem. “Se precisar de alguma coisa, me avise. Alguém fez o mesmo por mim, me ajudou quando eu era nova. É minha vez de dar o troco. Ou dar uma mão. Sei lá. A questão é, nós cuidamos uns dos outros aqui no Tall Red. O que importa é acumular aquele delicioso carma. Certo. Tenho que ir. Té mais.”

Zum. Foi-se Bixbee.

Tierslay cruzou a entrada do seu novo lar. Ela pairou até a única mobília do seu quarto simples, uma estrutura como casulo para segurá-la no lugar. O software do quarto falou, perguntando o que ela desejava experimentar. “Chuva”, disse ela, e o ambiente mudou, o quarto se escureceu enquanto nuvens de RA pingavam água imaginária para o outro lado do quarto. Ela suspirou, diminuiu sua visão para a meditativa, e se concentrou no som da água caindo. Tierslay buscou sua musa, ativou sua voz e perguntou: Como você deseja ser chamada?

[Essa decisão é sua, Tierslay. Como você prefere?]

Ela não hesitou. Monte. Seu nome será Monte.

[Acho que me cai bem. Obrigado. É agradável possuir um nome.]

A sensação de gratidão tremeluziu pelo sistema de Tierslay enquanto ela começava a mexer com a voz de Monte, para chegar tão perto da voz do seu velho amigo quanto sua memória permitir.


Novo Cliente :: Bateaux :: 2 de Agosto, DQ 9

Tierslay e Elis flutuaram pela bagunça da oficina, de braços dados, vasculhando os últimos pedidos de morfos personalizados. Bixbee zunia indo e voltando por cima, chapada com o último narco de Tierslay, pronto para estrear no Danger Noodle em alguns dias. Bixbee sempre pedia um pré-estreia e Tierslay sempre dava.

Quatro meses e nenhuma palavra do Taernen. Será que ele morreu? Será que a abandonou? Não importava. Ela não sentia falta dele, dos seus esquemas, ou das suas promessas. Tierslay tinha amigos, sua rep estava crescendo, e sua programação estava ficando mais afiada.

“Ah! Olha esse otário.” Elis jogou a imagem de um potencial cliente na RA de Tierslay, a imagem girava lentamente — um grande globo ocular em cima de ombros sintéticos, uma teia de falsos capilares vermelhos se estendendo da íris amarela por toda a esfera branca. O corpo, alongado, com membros ligeiramente desproporcionais envolvidos num roxo sintético cintilante. A mente de Tierslay disparou.

“Ele se marca como Ukku.” Elis passou pelo pedido de personalização do morfo e riu com um sorriso meio prepotente. “Veja esse idiota: Ukku pede desculpas pelo péssima @-rep, mas Ukku está bem estabelecido nas redes Guanxi e pode arranjar alguma compensação, o que pode ser útil algum dia, mesmo para um anarquista.” Elis bateu palmas de alegria pela audácia. “Que babaca!”

O medo tomou conta de Tierslay enquanto os seus últimos momentos na Terra brotavam da escuridão profundamente reprimida e consumiam seus pensamentos. Globos oculares. Fliperamas. Plástico.

O pedido do morfo seguia informando que o Ukku seria longiprojetado para o enxame em uma semana, para umas longas e proveitosas férias no sistema exterior, e Ukku ficou sabendo que Bateaux era a melhor oficina de sintemorfo de lá. “Ukku trabalha só com o melhor”, Elis leu com desdém. “Que acha? Devemos aceitar esta honra sublime?”

Tierslay fez o seu melhor para fingir desinteresse, mesmo com o asco se espalhando dentro dela. “Não sei, Elis. Parece uma dor de cabeça.”

“Talvez uma dor de cabeça seja o que esta oficina precisa. Dar uma sacudida. Aqui anda um tédio.”

Tierslay soltou o braço da Elis, tentando não se ofender com a pequena cutucada enquanto ela flutuava. “Certo. Fazemos assim. Vou dizer sim para este trampo estúpido do Ukku, com uma condição.”

Elis se animou e esfregou as mãos vigorosamente, ansiando a diversão. “Óóóóóó! Uma negociação. Então tá, não curto condições, mas qual será?”

“A condição é: eu coloco um pequeno presente secreto nos narcos que este Ukku pediu pra gente instalar na sua carcaça. Nada de mais, apenas uma zueirinha indetectável.”

Elis gostava de zueiras. “Sacana! Poderia prejudicar nossa rep se alguém souber…”

“É um risco, eu sei. E tem outra condição: a gente fica de olho no Ukku enquanto ele estiver no enxame.”

Elis deixou o silêncio assentar um pouco enquanto estudava o rosto de Tierslay. “Agora estou intrigada. O que é isto, Tier? Algum tipo de rolo? Uma vingança pessoal? Conhece este cara?”

“Pode-se dizer que sim.”

“Conta!”

“Por ora vou guardar isso para mim, se não se importar.”

Elis respondeu com um sorriso conspiratório e um aceno enquanto Bixbee voava sobre sua cabeça, rindo do prazer narcoinduzido. “Tá certo, Tier. Vou na sua. Negócio fechado.”


Pegadinha :: Danger Noodle :: 11 de Agosto, DQ 9

Ukku estava na pista de dança da Danger Noodle por quatro horas direto, cotovelos pontudos chacoalhando, pernas quase desabando, forçando os outros a desviarem. Claramente, Ukku estava chapado além da conta, rolando no último narco de Tierslay, junto com a maioria do clube. Tierslay, Elis, Pivo e Berk assistiam o sinte do bar, Bixbee do seu poleiro habitual acima da cabine do DJ, esperando Tierslay começar a pegadinha.

Sob o comando de Tierslay, Monte jogou um lampejo de terror noturno através da brecha no narco de Ukku. Antes, quando Monte mostrou para ela a imagem medonha que ele planejava usar (a carnificina flutuante que sobrou de uma infame chacina da Geração Perdida), Tierslay quase vomitou, mas Ukku simplesmente parou num segundo de contemplação, e então voltou a “dançar.”

“Hum, isso foi desapontador.” Elis deu um tapinha no braço de Tierslay. “O idiota é mesmo tapado. O negócio é voltar a beber até o turista parar de poluir nossa preciosa pista de dança.”

Quando Elis ia pedir outra rodada de bebidas para o grupo no autobar, Ukku parou de se mexer, como se tivesse sido desativado por uma mão invisível. O Tierslay cutucou Elis nas costelas. “Ah! Viu? Peguei o babaca. Alguma coisa aconteceu.”

Apressado, Ukku saiu da pista de dança e correu para uma cabine na seção Drip do Danger Noodle, atualmente inundada de sombras acentuadas e um verde neon atômico. Uma forma humanoide esbelta, surgiu na escuridão, aguardando a chegada de Ukku na cabine.

“Parece que alguém acha o palhaço tolerável”, comentou Berk.

“Finalmente, alguma coisa”, disse Elis. “Estamos de olho em Ukku faz dias, nenhum contato com ninguém. Intrigada, Tier?”

“Não estou gostando.”

Elis chamou Bixbee e ele desatou a zunir, transbordando alegria, como sempre. “Tierslay! Esse seu algo novo, deixa os pensamentos fofinhos igual marshmallows que não consigo parar de lamber. Vai inundar o Tall Red. Uau! Você é uma lenda —”

Elis interrompeu Bixbee, com um tom dominante e desconhecido de Tierslay. O tom de um superior, não um amigo. “Calma aí, Bix. Hora de trabalhar.” Bixbee colocou o último narco de Tierslay em suspensão e o farfalhar das suas asas diminuiu para uma velocidade razoável. “Qual é o problema, Elis?”

“Há uma cabine no canto de trás do Drip. O Globo Ocular tá lá, conversando com alguém. Eu vou acessar seus dados sensoriais enquanto você pega pra mim um visual do estranho. Na manha e escondido.”

Bixbee acenou com a cabeça e moveu-se para o Drip sem dizer nada. Elis compartilhou os dados visuais de Bixbee em RA com os outros enquanto chegava uma nova rodada de bebidas. “Aproveitem o show.”

Bixbee vagou lentamente sobre a pista de dança. Ele fez uma curva aberta pela bolha de suspensão de som de onde o DJ Myrmidon despejava suas gloriosas batidas na pista. Tierslay sentiu um frio na barriga conforme Bixbee chegava no Drip. Ela sabia o que estava por vir. Ela desejava que todo o clube evaporasse numa névoa, levando o estranho com ele, e que ela acordasse a qualquer momento encharcada de suor frio.

O Drip tomou um tom azulado de luz negra conforme Bixbee se aproximava da cabine no canto de trás. A silhueta do outro lado de Ukku sabia como ficar nas sombras, mas Tierslay reconheceu os trejeitos distintos. O movimento específico das mãos, seguido por provável discurso hipócrita, chegando numa conclusão com uma ênfase lenta e intensa. Tinha que ser o Taernen. Os gestos eram perfeitos demais.

O irmão de Tierslay terminou a sua reprimenda e Ukku acenou com a cabeça bulbosa. Por um segundo, Tierslay teve a vontade de fugir. A vida dela tinha começado a fazer sentido, uma construção da sua própria vontade. Cheia de alegria. Esperança. O regresso de Taernen tinha o peso de um presságio sombrio. Ele ia estragar tudo. A encrenca estava colada para sempre no seu ego. Ela deixou o medo assentar e diminuir um pouco. Ela precisava ouvir a voz de Monte.

Me diga que vai dar tudo certo, Monte.

[Vai dar tudo certo, Tierslay.] Uma piscadela apareceu na RA de Tierslay.

Ela entornou a bebida e deslizou o copo vazio pelo balcão, seu trajeto se curvou ligeiramente pela força Coriolis do habitat rotativo. Tierslay falou. “Eu conheço ele. Eu sei quem é.”

“Sabe?” Elis sorriu. “Conta.”

“É meu irmão.”

“Isto ficou bastante interessante, Tier. Seu misterioso inimigo, o Globo Ocular, sussurrando num canto escuro com seu irmão. Um irmão que você nunca mencionou antes. E agora, Tier? Você vai revelar que é espiã de uma hipercorp enviada para se infiltrar entre nós, anarquistas repugnantes, colocar uma bomba e fazer o enxame virar poeira espacial? Talvez um fantoche secreto das TITANs, que veio acabar com a gente?” Elis fez igual com sua bebida — entornou, deslizou, curvou.

“Não sou um fantoche…”

“Bem, isso é um alívio”, disse Pivo.

Nesse momento, Bixbee pairou perto demais da cabine do Taernen. Taernen virou-se para o olhar curioso de Bixbee, olhando direto através da RA com fendas cinzas leitosas. Seu rosto se inclinou para fora das sombras e para o brilho azul das gotas de neon caindo de cima. Linhas de costura no crânio. Soquete de acesso na nuca. Um biomorfo prod vagabundo, saído da pilha de pechinchas.

“Ei, babaca. Dá licença? Você está invadindo nosso espaço.” Taernen levantou-se e deu um passo agressivo em direção a Bixbee. Ukku saiu da cabine e flanqueou a libélula. Bixbee congelou. Taernen se irritou e foi pra cima. “Eu disse pra sumir, merdinha voadora.”

“Hora de ir. Eu vou na frente.” Elis avançou na direção do Drip. Pivo se espremeu com facilidade pelo pessoal dançando, enquanto Berk foi empurrando-os para os lados. Quando Tierslay conseguiu se recuperar e ir atrás, seus amigos já estavam no meio da multidão.

Quando Tierslay chegou na cabine, Taernen segurava Bixbee na mesa pelas asas e Ukku mexia uma vibrolâmina a alguns centímetros do tronco exposto de Bixbee. Elis estava de braço esticado, pressionando uma arma de fogo assustadora contra cabeça costurada de Taernen. Porque ela tem uma arma? Pivo e Berk estavam por perto, ameaçadores, braços tensos, armas sacadas.

“Calma aí. Não precisam espalhar meu cérebro nervosinho pelas paredes.” Taernen deu um sorriso, sem medo, acostumado com estas negociações.

“Se o Globo Ocular soltar a lâmina e recuar, não será preciso.” Elis também sorriu, estava habituada.

“Todo mundo, calma aí!” Tierslay exclamou, agitada. O Taernen olhou para ela, disfarçando que a reconheceu. Ela olhou nos olhos dele. “Ninguém além de mim deveria ter que lidar com este babaca.”


Negociação :: Setor Echo Blue :: 11 de Agosto, DQ 9

“Que belos amigos você tem, Tier. Eu andei com gângsters mais hospitaleiros.” Taernen abriu sua esfera de café preto e sugou-a. Sua terceira.

“Você ameaçou nosso amigo.” Tierslay ainda nem tinha tocado sua esfera, oolong com mel e canela, flutuando entre ela e seu irmão.

“Não gosto de merdinhas metendo o bedelho nos meus negócios. É rude.” Taernen inclinou-se para a frente, olhou-a de cima a baixo. “Você sabe qual é o negócio deles, certo? Quem são eles? Para quem trabalham?”

“Do que está falando?”

“Dane-se. Não importa agora. Ia acabar chegando nisto. Não pode fugir para sempre, Tier. Às vezes, temos que tomar uma posição. E a hora é agora.” Os olhos do Taernen olharam ao redor, procurando ameaças e curiosos. Ele está nervoso. Mais que o normal, Tierslay pensou. Ela escolheu redirecionar.

“Já passaram meses, Taernen. Eu tinha descartado você. Onde você esteve?”

“Por aí. Fazendo o que eu faço. Fiz algumas aquisições. Evitei alguns problemas inesperados. Mas agora estou aqui. Para começar uma vida nova. Assim como você. Não é pra isso que serve este lugar?” O Taernen deu um sorriso falso. Os olhos vazios do seu morfo não entregavam nada.

“Acho que é uma maneira de ver as coisas. Não tive escolha.”

“Mas você está feliz.”

“Sim. Estou feliz.” Ou estava. Ela pensou nos seus novos amigos. O que estão me escondendo?

“Então, é isso aí. E é graças a mim. Agora também quero ser feliz. Talvez seja a sua vez de fazer alguns favores.”

Tierslay furou sua esfera e bebeu um pouco enquanto ela organizava suas ideias. Monte palpitou. [Você pode apenas ir embora, Tierslay. Você não quer isto.]

Eu sei. O que Tierslay queria era que o seu passado ficasse tão enterrado que parecesse apenas uma ficção. Mas eu devo a ele. Não é fácil de explicar, é assim. Ele ainda é meu irmão. Você não entenderia, Monte. Tierslay colocou a musa em suspensão. Taernen tocou um dedo ossudo no rosto ossudo, olhos vazios entocados.

Tierslay respirou fundo. Seu coração estava acelerado. “Precisa de mim pra quê, Taernen?”

“Eu sabia que ia mudar de ideia.” Taernen sorriu e encolheu os ombros. “Não estou querendo muito. Apenas use um pouco rep pra mim em uma das docas. Tenho uma carga chegando.”

“Quando?”

“Três dias.”

“Qual é a carga?”

“Morfos prods, como este.” Ele bateu no peito. “Uma dúzia. Biológicos, mas com cérebros de hardware, como bots. Lixo barato, mas mesmo aqui com a ralé, morfos tem valor. Não deve levantar suspeitas. Talvez você possa me arrumar um daqueles narcos que te deram rep, deixar pré-carregado, aumentar um pouco o valor.”

“É isso?” Tierslay sabia que o favor não era só isso, mas perguntou mesmo assim. Seu irmão nunca começava com o grande pedido. Sempre havia outra coisa.

“Não. Preciso que verifique uma coisa para mim. Uma aquisição recente. Um dispositivo. Fazer o que faz melhor. Me dizer o que eu tenho para eu saber como vender.”

“Presumo que este dispositivo esteja chegando com a carga.”

“Isso.”

“E também vou assumir que é contrabando.”

“Não há leis aqui, mana, mas poderia dizer que sim. Se é o que estou pensando, deve haver muitos interessados pelo Sistema Solar dispostos a desembolsar uma fortuna para colocar as mãos nisso. Talvez até um leilão. Depois é só tranquilidade. Chega de vigarices. Imagine só.”

“E como conseguiu algo tão valioso, Taernen?”

“Não é da tua conta, Tier. As tuas mãos estarão limpas. Só preciso de uma avaliação.”

“Você conhece a minha regra.”

“Foda-se a tua regra!” Taernen cuspiu as palavras como se fossem veneno, mas voltou à sua calma calculada logo em seguida. Ele encolheu os ombros. “As pessoas se machucam. Vidas são perdidas. E daí? Os babacas teriam feito o mesmo comigo. Eles ainda estão atrás de mim e não vão desistir até eu repassar isso e sumir na alta classe. Este é o bilhete de saída. Não vou te pedir mais nada, mana, te prometo. Você vai fazer isso pra mim. Entendeu?”

Ela se forçou a olhar nos olhos dele. “Ok, Taernen. Mas é isto. A última vez. Depois disto, acabamos. Estamos quites.”

Taernen não disse nada, apenas se inclinou e sorriu.


Revelações :: Cargueiro No Turning Back:: 14 de Agosto, DQ 9

Ukku passou a serra circular em volta do crânio do prod, suspirando de prazer. Ele tirou a parte de cima da cabeça, revelando o cibercérebro. Puxando-o para fora, ele o desmontou, revelando um compartimento secreto. De dentro dele, ele extraiu um estranho dispositivo cúbico — com uns dez centímetros de tamanho. Ukku entregou o cubo a Tierslay como se o menor chacoalhar o destruísse em mil pedaços. Quando o cubo tocou sua pele metálica, um frio doloroso irradiou por sua mão. Ela achou o dispositivo difícil de focalizar, seus traços e contornos eram estranhamento difusos.

“A lâmina de Ukku observa atenta. Cada movimento. Não esqueça.”

Taernen sorriu. “Relaxa, Ukku. Tierslay vai se comportar. Certo, Tier?”

“Certo, Taer.” Tierslay, por um segundo, considerou tacar o cubo na parede, só para ver a cara dele. Mas ela estava intrigada.

Ukku voltou-se para o morfo prod com a cabeça vazia. Uma dúzia de outros como este flutuavam dentro de tanques de nutrientes, amarrados aos montes no depósito de carga, todos presos nas paredes. Ukku voltou a cortar a carne, desta vez manobrando um bisturi numa espiral estreita no peito do prod, onde normalmente teria um mamilo. Tierslay conseguia ouvi-lo rindo baixinho para si mesmo.

“Vai lá, Tier. Quanto mais cedo soubermos o que temos aqui, mais cedo dizemos adios, e você pode voltar para sua vidinha feliz”, disse Taernen.

Tierslay tentou novamente focalizar no cubo. Parecia ser composto por um único fio entrelaçado, alguma substância vítrea e negra torcida em sua forma perfeita. Mesmo na microgravidade, ele parecia denso. Ela nunca segurou nada assim. Isto é alienígena? Alguma coisa de TITAN?

Ela procurou uma conexão da mesh. Sem resposta. “A gente tentou as coisas comuns, Tier”, disse Taernen. “Isso não responde. Faz sua mágica. Descubra o que isso pode fazer.”

Ela fez vários exames com suas ferramentas. Sem portas, sem formas de acesso. Nada. Ela nem sabia se isso tinha energia.

“Nenhuma entrada óbvia. Nenhuma mostra de programação. Odeio falar isto pra você, Taer. À primeira vista, você não tem nada mais do que uma bugiganga inútil.”

Quando ela falou, uma janela de RA apareceu em sua visão. Seu nanodetector tinha encontrado alguma coisa. Ácaros. Nanobots. Mais janelas apareceram. Seu firewall disparou alertas — algo estava acessando sua rede pessoal. Mas ainda não havia nenhum sinal de rádio. Ela olhou para o cubo na sua mão. Oh deus… os nanobots. Eles estão fazendo uma ligação física…

Tierslay tentou soltar o cubo, mas não conseguiu. Todas as funções físicas cessaram. Paralisia. Estase. Ela entrou em pânico enquanto sentia alguma coisa sondado sua mente, explorando cada circuito, cada sinapse eletrônica. Monte balbuciou incompreensivelmente. Avisos espalharam-se por sua visão, sinais de múltiplas violações sendo executadas. [Integridade do sistema de musa comprometida. Assinaturas de código não autorizadas detectadas.] Monte estava sendo reescrito e ela não podia fazer nada.

Taernen continuou falando, sem perceber nada. “É tecnologia de TITAN, Tier. Tem que ser. Equipamento avançado de IA. Eu não teria aqueles babacas atrás de mim se não fosse. Ei, que merda você está fazendo? Tier? Para de ficar zoando! Ei! Tô falando com você!”

Ukku parou de esculpir carne e flutuou na direção de Tierslay, girando a lâmina. “Oh. Parece para Ukku que é hora de fatiar, ovelhinha.”

Um metro antes de Ukku chegar a Tierslay, buracos surgiram na cabeça de globo ocular de Ukku, seguido pelo estalo sônico do disparo eletromagnético. Conforme os pedaços da esfera estilhaçada de Ukku voavam, Taernen se jogou atrás de cobertura. Tierslay permaneceu imóvel, presa no lugar. Em seu campo de visão, Berk chegou na área com precisão militar, deslizando entre dois tanques de prods, com um fuzil assalto nas mãos. Pivo e Elis vinham logo atrás, com armas apontadas para a cabeça de Tierslay.

A presença que fora Monte se expandiu, agigantando-se, preenchendo cada cantinho do seu espaço digital. A entidade se estendeu sondando tudo, querendo estabelecer ligações com cada dispositivo na área. O terror tomou conta, quando Tierslay percebeu que ela havia se tornado um condutor daquela coisa que a controlava através do cubo.

“Solta o cubo, Tier, e se afasta. A gente não quer acabar com você, mas vamos se for preciso. Há muito em jogo. Seu irmão já é terrível o bastante, o que está segurando é muito pior.” Elis disse.

Sons gorgolejantes interromperam a tensão. Elis percebeu que os sons vinham dos tanques de prods e tentou entender o que aconteceu. O gel nutritivo estava vazando rápido, descobrindo os incubados.

“Tenho que admitir, mana!” Taernen gritou, com clara satisfação na voz rouca. “Eu sabia que ia conseguir! Você trouxe estes putos da Firewall direto pra mim. Detona eles, ToXxot!”

De trás de um brilho de pixels Bixbee apareceu em cima de Elis, abandonando a camuflagem. “Os prods!” ele gritou. “Ele está ativando os prods!”

Elis, Berk e Pivo viraram sua mira, mas já era tarde. Uma dúzia de morfos prods saíram nus se seus tanques de suspensão, bestas ferozes famintas por carne. O caos tomou conta do depósito de carga. Armas disparavam em todas as direções. Corpos tombavam em queda livre em meio de glóbulos de sangue e gel nutritivo. Gritos competiam com urros e rosnados. Taernen vangloriou-se e riu, sua armadilha funcionou.

Tierslay flutuava imóvel enquanto o combate acontecia. Ele não deu atenção, estava focada nas janelas internas, na presença que era o Monte. Ela conhecia os sinais, isso estava procurando vulnerabilidades, tentando hackear tudo ao redor. Desesperada, ela viu isso se focando na vulnerabilidade que quase todos ego no porão de carga tinham — a brecha que Tierslay colocou em cada instância dos seus narcoalgoritmos.

Balas perdidas acertaram os membros de Tierslay, levando-a a um giro nauseante. O cubo se soltou da sua mão, girando para longe junto com vários dedos dela. Ela não sentiu dor, apenas observou, mal compreendendo, conforme o fio obsidiano do cubo se desenrolava e esticava, sendo torcido de forma impossível em duas cordas entrelaçadas. Estas se curvavam em direções opostas, se encontrando alguns segundos depois para formar um círculo com vários metros de diâmetro.

Um redemoinho de devastação abriu espaço em torno círculo negro entrelaçado conforme ele começava a vibrar com força e violência. O chiado logo se tornou um ensurdecedor zumbido que levava cada tímpano no porão de carga à beira do colapso. Mãos nos ouvidos, pessoas encolhidas, armas flutuando soltas.

Um funil se formou no centro círculo, um redemoinho curvando e desfiando o espaço, crepitando com eletricidade estática. Com um clarão de luz verde, o vórtice central se expandiu numa sinistra esfera negra como breu, delimitada pelas bordas da estrutura. O zumbido parou repentinamente. O silêncio do porão de carga era pesado e carregado.

Pivo foi o primeiro a se recuperar. “Por Poseidon, é um portal! A porra dum portal de pandora!”

Um vasto volume atravessou do buraco de minhoca para o estrato digital sem fio do porão de carga, um fardo de inteligência tão densa que cada operação ao redor começou a travar, esmagadas por este consumo de banda. A presença surgiu através dos sistemas de mesh violados de Tierslay. Toda sua mente fervilhava num ciclo, prazer e dor além do que qualquer linguagem poderia expressar. Monte cresceu. Ele foi além dela, pelas brechas nos narcos, invadindo cada cérebro cibernético na sala.

O terror de Tierslay transformou-se numa alegria inexplicável. Sua criação estava prestes a ser abraçada por um ser divino, transformada em arma por uma entidade de poder quase ilimitado. Ela sabia que devia temer por seu irmão, seus amigos… mas em meio ao caos, ela encontrou clareza. Ela não sabia em quem confiar. Eles tinham seus próprios interesses. Seu coração buscou simpatia que não pode encontrar. Em vez disso, ele encheu-se de orgulho. Isso era uma TITAN, ela tinha certeza. Ela abriu o caminho para isso, abriu a porta. Ela importava.

Os combatentes atordoados do porão recuperaram seu equilíbrio por alguns segundos, apenas tempo suficiente para alcançar em vão as armas à deriva, antes da presença atacar. As mentes individuais foram esmagadas à submissão, seus morfos paralisados.

Imóveis.

De repente, Tierslay se viu no barraco de Monte no Mojave, o bot Go-nin aberto na frente dela. Ela foi para fora, no sol escaldante. Monte ficou de costas para ela, oculto pela sombra do beco. As montanhas distantes ruíram, gigantescas formas escuras se moviam pela neblina através delas. Ela foi até Monte, podia sentir a preocupação dele mesmo de longe. Ela forçou-se para chegar mais perto, tentar alcançar, e —

Uma enormidade de tráfego passou por ela, enquanto o não-Monte arrebentava cada mente digital do porão de carga. Vidas de memórias comprimidas passaram por Tierslay em velocidades inimagináveis, consumidas pela presença insaciável. Ela mergulhou no fluxo, deixou os pacotes passarem por ela, e —

Através dos olhos de Bixbee, a iniciação dele na organização secreta chamada Firewall.

Através dos olhos de Berk, uma reunião sobre Taernen e os detalhes da missão para recuperar um artefato de TITAN roubado.

Através dos olhos de Elis, a construção de um longo plano para encapsular e se aproximar de Tierslay, usá-la para chegar em Taernen.

Através dos olhos de Taernen, seu pagamento para capangas matarem Monte, seu trato com Ukku, e o dia final de Tierslay na Terra.

No calor do deserto, ela caiu de joelhos defronte a Monte e chorou. Era tudo mentira, fingimento e traição. Nenhuma destas pessoas se importava com ela. Ninguém era seu amigo. Ela lamentou pelo que pareceu horas. Lágrimas de traição mancharam a ferrugem nos pés de Monte.

Quando ela olhou para cima, Monte estava olhando para baixo, para ela, de forma incompreensível. O momento se estendeu, a noite chegou. Seu rosto foi engolido pelas trevas.

Imóveis.

Tierslay estava de volta no porão de carga. Cascas flutuantes ao redor, esburacadas, suas mentes se foram, seus egos tomados. Forçados a fazer upload. Ela tentou localizar o irmão, mas não conseguiu identificá-lo entre a carnificina e os outros prods.

A presença ciclópica — Monte — se foi. O sinal emanando do através do portal parou. Ela sabia que ele, isso, estava lá. Do outro lado.

A passagem aberta ronronava com a promessa de fuga. Tierslay fitava a esfera negra, tentando imaginar o que estaria do outro lado. Redemoinhos suaves de cores espectrais mudavam de um para outra nas bordas. Isto é um convite? Porque fui poupada? Ela contemplou o que significaria ir em frente, expandir seus talentos além de qualquer coisa que a transumanidade pudesse imaginar. Essa coisa, ela me escolheu. Eu sei. A ambição ferveu nela.

Um som, movimento. Ela girou para ver Pivo do outro lado do porão, agarrado à porta de um tanque, faltando braços e escorrendo sangue. Claro, pensou ela, ele era o único aqui com um biocérebro.

“Não faça isso, Tier. Não atravesse.” Sua voz soava cheia de dor.

“Seu merda, Pivo. Eu confiei em você. Eu confiei em todos vocês. Eu considerei vocês como amigos. Família, até. Quem diabos eram vocês?”

“Ainda somos seus amigos, Tierslay. Sim, mentimos sobre algumas coisas. Não sabíamos se podíamos confiar em você. Isso foi errado. Mas nós estamos do mesmo lado. Seu irm—”

“O meu irmão morreu. Assim como os outros.”

A estrutura começou a se contrair, lentamente encolhendo a esfera do buraco de minhoca. Em segundos, ela desapareceria no nada. Ficar ou ir? Não importa o que ela dissesse, a culpa pelo que aconteceu no porão de carga cairia sobre ela. Quem quer que fosse esta Firewall, eles certamente viriam atrás dela. Agora eles eram seus inimigos. O pensamento moldou um sorriso em seus lábios. É fácil. Começar de novo. Não confiar em ninguém. É nisso que você é boa, não é? Mas agora, pelo menos uma vez, eu não seria a presa desavisada.

Ela hesitou, ainda incerta se deveria entrar no redemoinho para o desconhecido sombrio. Taernen veio à mente, um dos poucos momentos quando eram crianças e ele estava vulnerável, quando ela arriscou sua vida para salvá-lo, a primeira grande enchente na favela de Heliópolis. Então ela considerou as memórias que ela tinha experimentado, como ele também a tinha traído. Ela riu. “Que sacana de merda.”

Tierslay agarrou as bordas da estrutura e empurrou-se, pulando no buraco de minhoca, certa que um dia ela retornaria para dar o troco em todos que a ferraram.

Os fios da estrutura se desenrolaram e formaram o pequeno cubo negro novamente. Pivo observava, quase desmaiando, conforme o dispositivo flutuou em meio às cascas vazias por um momento, antes de tomar a forma de uma libélula miniatura. O dispositivo zuniu pela câmara de ar aberta que levava ao resto da nave, e desapareceu.